quarta-feira, 27 de março de 2013

A expressão e a impressão

O Português é a mais bela das línguas que conheço. Complexa, elegante, sonora e imensamente traiçoeira.
  
Mas não há bela sem senão!
 
Talvez seja defeito meu, mas como lhe presto constante reverência, nos momentos em que o feitio resolve amesquinhar-se um pouco ou tão-somente num daqueles instantâneos hiatos do dia-a-dia, dou por mim a embirrar com certas expressões.
 
Tenho tendência para a interpretação literal, embora me considere perspicaz a ler nas entrelinhas. Em muitas ocasiões este hábito torna-se enervante para quem tenha a infelicidade de partilhar comigo o momento. Resmungo. Possui-me uma espécie de alergia que me torna num ser irritante, de tão irritado.
 
Alguém consegue entender o sentido da utilização do termo ‘inválido’quando se pretende adjetivar um ser humano. É possível conceber um contexto digno para esta palavra quando o sujeito é alguém que apenas atingiu um estado de incapacidade física ou mental? Não fora um cidadão remediado, por mera dignidade linguística recusar-me-ia a receber uma pensão social de invalidez num futuro distante. Isto se por milagre me esperar esse tipo de esmola. Soa-me sempre mal, como soam todos os rótulos e carimbos a que muita gente se habitua a recorrer para generalizar ou simplificar, geralmente com pendor pejorativo.
 
Sim, a invalidez é um termo técnico! Sempre me questionei sobre o critério que torna um cidadão mais ou menos válido. Não é questão que me atormente – excluindo nos tais momentos ‘zen’-, pelo que nunca me dei ao trabalho de indagar o assunto com a profundidade que certamente mereceria. Imagino que tratando-se de um termo técnico e dada a natureza, haja uma fronteira cronológica a partir da qual nos tornamos inválidos para o mundo e sobretudo para o Estado. Talvez seja aquele momento em que, num sentido muito figurado, despimos as vestes humanas para nos tornarmos uma espécie de parasitas da camada ativa e produtiva. O início da capitulação. Aquela intermitência entre o quase vivo e o quase morto. Um fardo que importa arrumar e alimentar frugalmente num qualquer espaço esconso. Uma maçada para alguns políticos, um enigma para os demógrafos.
 
Houve em tempos alguém, ou alguéns, que teve a peregrina ideia de fundar uma nobre instituição de solidariedade social denominada Inválidos do Comércio. Por sinal, a antítese de tudo que me repele no termo. A frieza sentenciosa colada ao étimo. É um lugar onde a velhice é apenas um outro estágio da existência humana. Acolhe condignamente centenas de velhotes que entraram no ocaso deste grande dia que é a Vida. Apesar de continuar a considerar bolorenta e infeliz a aplicação do termo não deixo de sentir um carinho e respeito que instantaneamente neutralizam a minha ira.
 
Outro dos estigmas linguísticos que me irritam solenemente é a expressão ‘portador de deficiência’. Não raras vezes, para além da tendência indómita para ouvir/ler tudo no sentido literal, a minha mente tem o péssimo hábito de visualizar as expressões de forma quase cinematográfica. Já tentei entender qual a razão da maioria dos deficientes preferirem ser designados ou abordados como pessoas portadoras de deficiência. Estarei certamente enganado, mas para mim o ato de portar aplica-se sempre a um objeto. Implica um percurso com um ponto inicial e outro final. Infelizmente, a maioria das deficiências não correspondem a estados transitórios, sendo que muitas delas são genéticas, totais ou perpétuas (outro termo com o qual antipatizo).
 
Não me considero preconceituoso e tento encarar a vida de uma forma realista. Admito, porém, que um deficiente considere o meu raciocínio insensível e diferenciador. Não será por sentir pena, mas penso que um deficiente, seja qual for a natureza da sua condição, deve ter sempre mais direitos que qualquer pessoa na posse pretensamente plena das suas capacidades naturais.
 
Contudo, o termo cujo uso me causa uma espécie de urticária, sobretudo quando usado por jornalistas, é ‘encurralado’. Normalmente o que se pretende é passar a imagem de alguém que está cercado, acossado física ou intelectualmente, ou em muitas outras situações limite.
 
Ora, pelas mesmíssimas razões que já adiantei, o que eu visualizo mentalmente quando ouço esta palavra, independentemente do contexto onde se insira, é um curral. Um local onde se recolhem os animais. Obviamente que tal dedução se deve a um instinto mental que não consigo controlar. Todo este processo é automático e ocorre por continuidade lógica.
 
Não entendo o porquê de muitos jornalistas não tirarem partido do vasto e rebuscado vocabulário que a língua portuguesa proporciona. Alguns deles parecem-se mesmo com bestas encurraladas, encarcerados que estão entre o desejo de brilhar e os limites das suas capacidades intelectuais. E isto é bem mais humano do que possa parecer.

1 comentário:

  1. É por essas e outras que embirro solenemente com os "portadores" de bilhetes de identidade. Parece que se trata de uma doença ou síndrome. Se bem que, nos tempos actuais, quer-me parecer que possuir bilhete de identidade português começa a ser mesmo uma doença incurável... ;)

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