Mas não há bela sem senão!
Talvez seja defeito meu, mas como lhe presto constante reverência, nos
momentos em que o feitio resolve amesquinhar-se um pouco ou tão-somente num
daqueles instantâneos hiatos do dia-a-dia, dou por mim a embirrar com certas
expressões.
Tenho tendência para a interpretação literal, embora me considere
perspicaz a ler nas entrelinhas. Em muitas ocasiões este hábito torna-se
enervante para quem tenha a infelicidade de partilhar comigo o momento.
Resmungo. Possui-me uma espécie de alergia que me torna num ser irritante, de
tão irritado.
Alguém consegue entender o sentido da utilização do termo ‘inválido’quando
se pretende adjetivar um ser humano. É possível conceber um contexto digno para
esta palavra quando o sujeito é alguém que apenas atingiu um estado de incapacidade
física ou mental? Não fora um cidadão remediado, por mera dignidade linguística
recusar-me-ia a receber uma pensão social de invalidez num futuro distante.
Isto se por milagre me esperar esse tipo de esmola. Soa-me sempre mal, como
soam todos os rótulos e carimbos a que muita gente se habitua a recorrer para
generalizar ou simplificar, geralmente com pendor pejorativo.
Sim, a invalidez é um termo técnico! Sempre me questionei sobre o
critério que torna um cidadão mais ou menos válido. Não é questão que me
atormente – excluindo nos tais momentos ‘zen’-, pelo que nunca me dei ao
trabalho de indagar o assunto com a profundidade que certamente mereceria.
Imagino que tratando-se de um termo técnico e dada a natureza, haja uma
fronteira cronológica a partir da qual nos tornamos inválidos para o mundo e
sobretudo para o Estado. Talvez seja aquele momento em que, num sentido muito
figurado, despimos as vestes humanas para nos tornarmos uma espécie de
parasitas da camada ativa e produtiva. O início da capitulação. Aquela
intermitência entre o quase vivo e o quase morto. Um fardo que importa arrumar
e alimentar frugalmente num qualquer espaço esconso. Uma maçada para alguns
políticos, um enigma para os demógrafos.
Houve em tempos alguém, ou alguéns, que teve a peregrina ideia de fundar
uma nobre instituição de solidariedade social denominada Inválidos do
Comércio. Por sinal, a antítese de tudo que me repele no termo. A frieza
sentenciosa colada ao étimo. É um lugar onde a velhice é apenas um outro
estágio da existência humana. Acolhe condignamente centenas de velhotes que
entraram no ocaso deste grande dia que é a Vida. Apesar de continuar a
considerar bolorenta e infeliz a aplicação do termo não deixo de sentir um
carinho e respeito que instantaneamente neutralizam a minha ira.
Outro dos estigmas linguísticos que me irritam solenemente é a expressão
‘portador de
deficiência’. Não raras vezes, para além da tendência indómita para
ouvir/ler tudo no sentido literal, a minha mente tem o péssimo hábito de
visualizar as expressões de forma quase cinematográfica. Já tentei entender
qual a razão da maioria dos deficientes preferirem ser designados ou abordados
como pessoas portadoras de deficiência. Estarei certamente enganado, mas para
mim o ato de portar aplica-se sempre a um objeto. Implica um percurso com um
ponto inicial e outro final. Infelizmente, a maioria das deficiências não
correspondem a estados transitórios, sendo que muitas delas são genéticas,
totais ou perpétuas (outro termo com o qual antipatizo).
Não me considero preconceituoso e tento encarar a vida de uma forma
realista. Admito, porém, que um deficiente considere o meu raciocínio
insensível e diferenciador. Não será por sentir pena, mas penso que um
deficiente, seja qual for a natureza da sua condição, deve ter sempre mais
direitos que qualquer pessoa na posse pretensamente plena das suas capacidades
naturais.
Contudo, o termo cujo uso me causa uma espécie de urticária, sobretudo
quando usado por jornalistas, é ‘encurralado’.
Normalmente o que se pretende é passar a imagem de alguém que está cercado,
acossado física ou intelectualmente, ou em muitas outras situações limite.
Ora, pelas mesmíssimas razões que já adiantei, o que eu visualizo
mentalmente quando ouço esta palavra, independentemente do contexto onde se
insira, é um curral. Um local onde se recolhem os animais. Obviamente que tal
dedução se deve a um instinto mental que não consigo controlar. Todo este
processo é automático e ocorre por continuidade lógica.
Não entendo o porquê de muitos jornalistas não tirarem partido do vasto
e rebuscado vocabulário que a língua portuguesa proporciona. Alguns deles
parecem-se mesmo com bestas encurraladas, encarcerados que estão entre o desejo
de brilhar e os limites das suas capacidades intelectuais. E isto é bem mais
humano do que possa parecer.